Arquivo para download: Ninguém é deleuziano, por Suely Rolnik

Deleuze tinha um enfizema que vinha se agravando, há mais de vinte e cinco anos (nos anos setenta quando o conheci, ele já dispunha de apenas um oitavo de pulmão funcionando). A traqueostomia ele fez há pelo menos cinco anos atrás, quando passou a respirar através de uma máquina. Ficava plugado a esta máquina a maior parte do tempo, sem nenhuma autonomia, só podendo falar e escrever por um brevíssimo período de tempo a cada dia. Me contou um amigo que nos últimos tempos ele ficava repetindo suas idéias para lembrá-las quando pudesse escrever. Relendo as cartas que ele me escreveu desde que voltei ao Brasil, em 1979, notei que sua letra foi ficando cada vez mais trêmula e irregular. Na última carta, no final de setembro, ele se queixava de sua restrição, de ter que aproveitar o mínimo de energia que lhe restava para seu trabalho, sem poder dedicar-se a outras leituras. Nas últimas semanas, seu pulmão chegou a um tal ponto de asfixia que ele não podia mais escrever linha alguma, nem falar; com a chegada do inverno, a coisa iria se agravar e não havia nenhuma possibilidade de recuperação. Enquanto ele pôde escrever e falar, mesmo no estado precário de seus últimos anos, ele continuou a querer viver. Foi neste estado que ele escreveu seu último livro com Guattari (O que é Filosofia?) e organizou duas coletâneas de artigos e entrevistas (Conversações e Critique et Clinique). Mas quando tudo se tornou definitivamente impossível, ele escolheu fazer o que parece sempre ter feito em sua vida e que, em todo caso, sempre defendeu em sua obra: enfrentar as diferenças que se apresentam e, por mais insuportáveis que sejam, encaminhar a existência na direção que elas apontam. Haverá diferença mais insuportável e que requer maior coragem de enfrentamento do que a morte? Deleuze teve a coragem de afirmar a vida até neste momento extremo de seu fim.

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