Comentário de Gilles Deleuze sobre o capítulo "O convalescente", de "Assim falou Zaratustra"

Em muitos textos, Nietzsche considera o eterno retorno como um ciclo onde tudo volta, onde o Mesmo volta; e que volta ao mesmo. Mas o que significam estes textos? Nietzsche é um pensador que “dramatiza” as ideias, quer dizer, apresenta-as como acontecimentos sucessivos, a diversos níveis de tensão. Já o vimos para a morte de Deus. Da mesma maneira, o eterno retorno é objeto de duas exposições (e haveria mais se a obra não tivesse sido interrompida pela loucura, impedindo uma progressão que o próprio Nietzsche concebera explicitamente). Ora, destas duas exposições que nos ficaram, uma é respeitante a Zaratustra doente, a outra, Zaratustra convalescente e quase curado. O que faz com que Zaratustra esteja doente é precisamente a ideia do ciclo: a ideia que Tudo volte, que o Mesmo volte, e que tudo volte ao mesmo. Porque, neste caso, o eterno retorno não passa de uma hipótese, uma hipótese ao mesmo tempo banal e aterrorizadora. Banal, porque equivale a uma certeza natural, animal, imediata (é por isso que Zaratustra, quando a águia e a serpente se esforçam por consolá-lo, lhes responde: vocês fizeram do eterno retorno uma “omissão”, reduziram o eterno retorno a uma fórmula bem conhecida, demasiado conhecida). Aterrorizadora também, porque, se é verdade que tudo volta, e volta ao mesmo, então o homem pequeno e mesquinho, o niilismo e a reação voltarão também. (é por isso que Zaratustra clama seu grande desgosto, o seu grande desprezo, e declara que não pode, que não quer, que não ousa dizer o eterno retorno).

O que se passou quando Zaratustra estava convalescente? Apenas resolveu suportar o que não suportava há momentos? Aceita o eterno retorno, apreende a sua alegria. Trata-se apenas de uma mudança psicológica? Evidentemente que não. Trata-se de uma mudança na compreensão e na significação do próprio eterno retorno. Zaratustra reconhece que, doente, ele não compreendera nada sobre o eterno retorno. Que este não é um ciclo, que não é retorno do Mesmo nem retorno ao mesmo. Que não é uma evidência natural plana, para uso dos animais, nem um triste castigo moral, para uso dos homens. Zaratustra compreende a identidade “eterno retorno = Ser seletivo”. Como é que aquilo que é reativo e niilista, como é que o negativo poderia voltar, já que o eterno retorno é o ser que se diz apenas da afirmação, do devir em ação? […] O eterno retorno é a Repetição; mas é a Repetição que seleciona, a Repetição que salva. Segredo prodigioso de uma repetição libertadora e selecionante. 

Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 32 e 33, Edições 70.


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