Na Web: Um exercício com mapas e redes indeterminadas do comum, por Peter Pal Pélbart
Fernand Deligny transcreve as linhas e trajetos das crianças autistas, faz mapas: distingue cuidadosamente as "linhas de errância" e as "linhas costumeiras". E isso não vale somente para os passeios, há também mapas de percepções, mapas de gestos (cozinhar ou recolher madeira), com gestos costumeiros e gestos erráticos. Deligny abriu suas linhas de escrita para linhas de vida. E constantemente as linhas se cruzam, se superpõem por um instante, se seguem por um tempo. Contra a insistência de alguns em ler o humano sob o signo das estruturas de parentesco, Deligny, tem a pachorra de querer lê-lo à luz da “estrutura da rede”, por assim dizer, e ele a descobre por toda parte, desde sua infância, na adjacência precisamente de espaços proibidos, ou interditados, ou vagos. [...] Ao invés de querer compreender, e eventualmente significar, interpretar, cabe traçar, cartografar, diria Guattari, seguir o curso das coisas, como se diz, seguir o curso de um rio, e não fixar-se nas supostas intenções, sempre projetadas, pressupostas. [...] Há, por exemplo, nessas linhas erráticas, lugares de atração, por exemplo, a fonte de água, ou mesmo um lençol de água o outrora objeto de culto, já recoberto, que só os autistas detectam. O autista que Deligny adota em 1967, e com quem vive por anos, rebatizado janmari, curva-se diante da água, quase como numa reverência, e passa muito tempo ouvindo e contemplando, seu corpo em total vibração, exultação … a água, como diz Deligny, não é para ele uma coisa, pois ele não é um sujeito… a água, sem nenhuma utilidade, nenhuma serventia, nenhuma finalidade, nada tem a ver com a sede do animal, pois a atração pela água vem antes da sede, e é inesgotável. Eis uma ligadura, que não deveria ser rebatida sobre o discursivo.
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